terça-feira, 31 de agosto de 2010

METADE
(Oswaldo Montenegro)

Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
porque metade de mim é o que eu grito
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que amo seja pra sempre amada,
mesmo que distante
porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor
apenas respeitadas como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimentos
porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço
e que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto num doce sorriso
que eu me lembro ter dado na infância
porque metade de mim é a lembrança do que fui
a outra metade não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais
porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

LUZ DENTRO DE MIM
(Patrícia Ximenes)

O teu amor é brilho uniforme
Que clareia os meus pensares
Iluminando meu sul e meu norte,
Amor infinito feito os mares

Que ninguém sabe onde começam
Muito menos onde se terminam
Sei apenas que são grandiosos
Donos de uma beleza que fascina.

Estonteantes como o teu olhar
Que hipnotiza e muito cativa
Meu frágil e indefeso coração
Agora emite uma luz que irradia

Feito melodia em suave canção
Fazendo nascerem sonhos e alegrias
E um amor que não cabe nas mãos,
Uma realidade que eu tanto queria.

sábado, 28 de agosto de 2010

TEUS SEIOS
(J. G. de Araújo Jorge)

Teus seios... quando os sinto, quando os beijo
na ânsia febril de amante incontentado,
são pólos recebendo o meu desejo,
nos momentos sublimes de pecado...

E às manhãs... quando acaso, entre lençóis
das roupagens do leito, saltam nus,
lembram, não sei, dois lindos girassóis
fugindo à sombra e procurando a luz!...

que se ostenta a tremer em dois botões
na primavera ardente de um amor
que vive para as nossas sensações...

Túmidos... cheios... palpitantes, como
dois bagos do teu corpo de sereia,
tem um rubro botão em cada pomo
como duas cerejas sobre a areia...

Quando os tenho nas mãos... Quantas delícias!...
Arrepiam-se, trêmulos , sensuais,
e ao contato nervoso das carícias
tocam-me o peito como dois punhais!...

Meu lúbrico prazer sempre consolo
na carne destas ondas revoltadas,
que são como taças emborcadas
no moreno inebriante do teu colo...

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

FLOR NIRVANIZADA
(Cruz e Sousa)

Ó cegos corações, surdos ouvidos,
Bocas inúteis, sem clamor, fechadas,
Almas para os mistérios apagadas,
Sem segredos, sem eco e sem gemidos.

Consciências hirsutas de bandidos,
Vesgas, nefandas e desmanteladas,
Portas de ferro, com furor trancadas,
Dos ócios maus histéricos Vencidos.

Desenterrai-vos das sangrentas furnas
Sinistras, cabalísticas, noturnas
Onde ruge o Pecado caudaloso...

Fazei da Dor, do triste Gozo humano,
A Flor do Sentimento soberano,
A Flor nirvanizada de outro Gozo!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

SONETO
(Violante do Céu)

Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este meu, tirano Cupido?
Pois tirando-me enfim todo o sentido
Me deixa o sentimento duplicado.

Absorta no rigor de um duro fado,
Tanto de meus sentidos me divido,
Que tenho só de vida o bem sentido
E tenho já de morte o mal logrado.

Enlevo-me no dano que me ofende,
Suspendo-me na causa de meu pranto
Mas meu mal (ai de mim!) não se suspende.

Ó cesse, cesse, amor, tão raro encanto
Que para que de ti não se defende
Basta menos rigor, não rigor tanto.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

UM CEGO
(Jorge Luis Borges)

Não sei qual é a face que me mira
quando miro essa face que há no espelho;
e desconheço no reflexo o velho
que o escruta, com silente e exausta ira.
Lento na sombra, com a mão exploro
meus traços invisíveis. Um lampejo
me alcança. O seu cabelo, que entrevejo,
é todo cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
a superfície vã das simples coisas.
Meu consolo é de Milton e é valente,
porém penso nas letras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver meu rosto
saberia quem sou neste sol-posto.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ
(Vinícius de Moraes)

Eu sei e você sabe,
Já que a vida quis assim,
Que nada nesse mundo
Levará você de mim.
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe,
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste,
Por isso, meu amor,
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham a você.

Assim como o oceano
Só é belo com luar,
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar,
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover,
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer,
Assim como viver
Sem ter amor não é viver,
Não há você sem mim
E eu não existo sem você.

domingo, 22 de agosto de 2010

TUDO É O OLHAR
(Clarice Lispector)

Não te amo mais
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis
Tenho certeza que
Nada foi em vão
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada
Não poderia dizer mais que
Alimento um grande amor
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
Eu te amo!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...

Agora, releia o texto de baixo para cima

sábado, 21 de agosto de 2010

SONHO AZUL
(Márcia Theóphilo)

Voa gavião, leva meus olhos com as tuas asas
e mostra-me onde mora o deus jaguar
No sonho azul celeste, que abraça a terra
no sonho sereno em alto
que somente os pássaros acolhe.
Eu quero ver o deus jaguar.

Um pássaro verdadeiro atravessa o céu
ou é um pássaro de metal
que voa por longas distâncias
e por onde voa o nosso pensamento?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

VERDES SÃO OS CAMPOS
(Luís Vaz de Camões)

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

CONTEMPLO O LAGO MUDO
(Fernando Pessoa)

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

SENTIMENTO DO MUNDO
(Carlos Drummond de Andrade)

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.


Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
Eu ficarei sozinho
Desfiando a recordação
do sincero, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite

terça-feira, 17 de agosto de 2010

LUA
(Bruna Lombardi)

Ele me deitou nua
em cima do calçamento,
e eu sabia que era loucura.
que era coisa de momento.
Pensei até que era a lua
danada no quarto crescente
ou era fúria de maré
crescendo dentro da gente;
e eu me sentia suada,
e eu me sentia escura.

Mas não tinha medo de nada
que toda paixão da coragem
e me deitei na calçada
com orgulho e vadiagem
e quanto mais me sujava,
mais me sentia à vontade,
mais eu queria e deixava,

mais eu pedia e mais dava
e ria, gemia e brincava
de ter tanta liberdade.
Ele me deitou na rua,
numa qualquer de passagem
e eu sabia que era loucura,
que era coisa de um momento,
de grande camaradagem.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

DESEJO
(Victor Hugo)

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.,
E que esquecendo, não guarde mágoa.

Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem se desesperar.
Desejo também que tenha amigos
Que, mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis;
E que pelo menos em um deles
Você possa confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos;
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que
Algumas vezes você se interpele
A respeito de suas próprias certezas.
E que entre eles
Haja pelo menos um que seja justo.

Desejo depois, que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente
Para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco,
Porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente.
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais;
E que sendo maduro,
Não insista em rejuvenescer.
E que sendo velho,
Não se dedique ao desespero,
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor.

Desejo, por sinal, que você seja triste.
Não o ano todo, mas apenas um dia,
E que nesse dia,
Descubra que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso
E o riso constante é insano.

Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência
Acima e a respeito de tudo,
Que existem oprimidos, injustiçados e infelizes,
E que estão bem à sua volta.

Desejo ainda
Que você afague um gato, alimente um cuco
E ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal,
Porque assim você se sentirá bem por nada.

Desejo também
Que você plante uma semente, por menor que seja,
E acompanhe o seu crescimento
Para que você saiba
De quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele na sua frente e diga:
"Isso é meu"
Só para que fique bem claro
Quem é o dono de quem.

Desejo também
Que nenhum de seus afetos morra
Por eles e por você,
Mas que se morrer
Você possa chorar sem se lamentar
E sofrer sem se culpar.

Desejo, por fim,
Que você, sendo homem, tenha uma boa mulher
E que sendo mulher, tenha um bom homem;
Que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes.
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor pra recomeçar.

E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a lhe desejar.

domingo, 15 de agosto de 2010

CRIANÇA NO LIXO
(Wilson Gonçalves)

Passando por um lixão,
Lá eu vi um cão
Faminto e sarnento
Procurando alimento
Naquela podridão.

Não tive pena nem dó,
Com nada me comovi,
Mas não me sai da lembrança
A outra cena que vi:

Tão sujinho e inocente,
Um filhotinho de gente
O lixo a escarafunchar.

Isso me ardeu o coração,
Pois apesar da podridão
Ainda deu pra notar:
Ele tinha um sorriso no rosto
E esperança no olhar…

sábado, 14 de agosto de 2010

AH! OS RELÓGIOS
(Mario Quintana)

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas são...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

DE REPENTE
(Aurenice Vítor)

De repente o meu tempo se esgotou
E tu não me disseste nada...
Não te toquei, não te beijei
E já era madrugada.

Tu apenas me olhaste
Triste, frio como o orvalho lá fora.
Noite clara, Lua cheia,
Madrugadinha... e eu indo-me embora.

De repente meu tempo se esgotou
E tu não me disseste nada...
Não reclamaste minha ausência
Nem minha dor tão calada!

O carinho frio do beijo,
Minha falta de desejo,
Tudo culpa dessa vida infame,
Daquele álcool ingerido,
Do telefonema anônimo
Que tu já havias esquecido.

Tudo conspirando contra o amor,
Afogando os prazeres nessa hora calada.
De repente tu viraste pro canto e dormiste
E minha dor aumentou, no fim da madrugada!

De repente tudo era silêncio e solidão,
E tu... não me disseste nada!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

NOITE DE AMOR
(Castro Alves)

Passava a Lua pelo azul do espaço
De teu regaço
A namorar o alvor!
Como era tema no seu brando lume...
Tive ciúme
De ver tanto amor.

Como de um cisne alvinitentes plumas
Iam as brumas
A vagar nos céus,
Gemia a brisa — perfumando a rosa —
Terna, queixosa
Nos cabelos teus.

Que noite santa! Sempre o lábio mudo
A dizer tudo
A suspirar paixão
De espaço a espaço — um fervoroso beijo
E após o beijo
E tu dizias — "Não!..."

Eu fui a brisa, tu me foste a rosa,
Fui mariposa
— Tu me foste a luz!
Brisa — beijei-te; mariposa — ardi-me,
E hoje me oprime
Do martírio a cruz

E agora quando na montanha o vento
Geme lamento
De infinito amor,
Buscando debalde te escutar as juras
Não mais venturas...
Só me resta a dor.

Seria um sonho aquela noite errante?...
Diz, minha amante!...
Foi real... bem sei...
Ai! não me negues... Diz-me a Lua, o vento
Diz-me o tormento...
Que por ti penei!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

TRADUZIR-SE
(Ferreira Gullar)


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

RETALHOS DA ALMA
(Efigênia Coutinho)

Acaricia-me um olhar efêmero
agarrando à rima com esmero.
Vem da alma a estrofe iluminada
ao final resplandece alucinada!...

Ó Alma, quem há de dizer, contudo,
tuas infinitas angústias ao mundo?
Se sangras no teu sonhar mudo
a sufocar o teu grito em tudo?...

Este sonho se vai Alma rara!
Morrendo aos céus brandido.
No tempo, as confissões calara
emudecendo um Amor bandido!


Morres Alma, em sono profundo,
mas deixas os retalhos em tudo
para saberem que em teu amor mudo,
neste mundo, fostes um Mundo!...

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

NU
(Manuel Bandeira)

Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.

(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.

Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite.

Brilham teus joelhos,
Brilha o teu umbigo,
Brilha toda a tua
Lira abdominal.

Teus exíguos
- Como na rijeza
Do tronco robusto
Dois frutos pequenos –

Brilham.) Ah, teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular.

Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu'alma
Nua, nua, nua...

domingo, 8 de agosto de 2010

A CATEDRAL
(Alphonsus de Guimaraens)

Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

sábado, 7 de agosto de 2010

FORÇA DAS ÁGUAS
(Lília Diniz)

Esse espírito que
navega da nascente
às ribanceiras
entre matas
pedras, redes,
alimenta a poesia
nos sonhos
das lavadeiras.

As do rio
se renovam
naqueles braços de mar
pois cada dia é um rio
diferente a passar.

As dos poços
e açudes
de molho pegam a
sonhar.
Versos
arrebentam
das trouxas,
das espumas,
do olhar.

De sonhos
elas entendem
lavam todos,
todo dia
e botam
de quarador
na pedra
do meio dia,
ensaboam,
lavam,
enxáguam
em bonitas
melodias!...

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

AO CAIR DA TARDE
(Kora Lopes)

Cai a tarde, lenta e calma...
E o encanto da nostalgia
Fala fundo na minh’alma.
Fala de tempos passados
E de encantos de outrora,
De momentos encantados
Vindos naquela hora...


Fala de amor... de alegria...
De sonhos idealizados
Numa louca fantasia....

E uma doce quietude,
Que o meu ser todo invade,
Traz um sentir meio rude
Que só me fala de saudade...
Uma saudade doída,
Mas que faz bem ao coração,
Pois traz a lembrança querida
De momentos de grande emoção...
Cai a saudade na natureza
E a saudade no meu coração

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

ANJOS DO CÉU
(Álvares de Azevedo)

As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d'escuma revolvem-se nus!
E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!
Que dormem, que sonham- e o vento dos céus
Vem tépido à noite nos seios beijar!
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!
E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!
Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar,
Por que não consentes, num beijo de amor
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

PASSEIO AO CAMPO
(Florbela Espanca)

Meu amor! Meu amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina…
Pele doirada de alabastro antigo…
Frágeis mãos de madona florentina…
- Vamos correr e rir por entre o trigo! –



Há rendas de gramíneas pelos montes…
Papoilas rubras nos trigais maduros…
Água azulada a cintilar nas fontes…

E à volta, Amor… tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras…

terça-feira, 3 de agosto de 2010

CANÇÃO DO EXÍLIO
(Gonçalves Dias)

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite–
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

EPIGRAMA
(Gregório de Mattos e Guerra)

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

domingo, 1 de agosto de 2010

O CÂNTICO DA TERRA
(Cora Coralina)

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.

Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.